segunda-feira, agosto 06, 2007

Há quem nasça. Há quem morra.

Florida e a Secar. João Olarques (2007).

"Quando sofre, a sua carne tem consciência de que se decompõe? Por outras palavras: que irá suceder à sua consciência? Vejamos: quando pretendemos dormir graças a um esforço de atenção, o resultado é quase sempre uma insónia. E se, por um esforço de consciência, pretendemos ajudar a digestão, corremos o risco de uma indigestão de carácter nervoso. A consciência é um veneno, um instrumento de auto-intoxicação, quando aplicada a nós mesmos. A consciência é um foco dirigido para fora; a consciência ilumina o caminho que se estende à nossa frente para nos evitar as quedas. Dirigida para fora, é um farol aceso no topo de uma locomotiva; para dentro, é a catástrofe.

Que acontecerá, portanto, à vossa consciência?, perguntais-me. Mas quem sois vós, Anna Ivanovna? Eis o problema. Vejamos um pouco melhor: que sentis, de que tendes consciência, de que parte do vosso corpo tendes consciência?, pergunto. Dos rins, do fígado, das veias? Não. Procurai na memória... Só encontrareis sinais de terdes estado virada para fora, para a acção, no esforço das vossas mãos, na família, nos outros. E agora, escutai-me bem. O homem presente nos outros homens, é isso precisamente que constitui a alma. Quem sois vós, Anna Ivanovna? O ar que respirais, a comida que comeis, tudo isso de que a vossa consciência se nutriu durante a vida inteira. Isso, sim, eis o que é a vossa alma, a vossa vida nos outros, a vossa mortalidade. E depois? Nos outros vivemos, nos outros viveremos. Que importa que lhe chamem, apenas, recordação? Tudo isso sois vós, finalmente parte integrante do futuro.

Uma última coisa. Não há razão para nos inquietarmos. A morte não existe. A morte nada tem que ver connosco. Falaste-me, há pouco, de inteligência: a inteligência, sim, é outra coisa, somos nós que a descobrimos. E a inteligência no seu sentido mais profundo o que é ela, senão, o próprio dom da vida?

Não haverá morte, disse São João, e os argumentos são simples e claros. Não haverá morte, porque o passado já se consumou. É como se ele dissesse: não haverá morte porque todos nós a conhecemos: - é história antiga que já não consegue atrair-nos; do que precisamos, agora, é de algo de novo e o que é novo é a vida eterna."

IN O Doutor Jivago, Boris Pasternak.