terça-feira, fevereiro 17, 2009

O Doutor Jivago

PASTERNAK, Boris; O Doutor Jivago. Tradução de Augusto Abelaira. Introdução de Aquilino Ribeiro. Lisboa: Círculo de Leitores. Janeiro 1975.

Nona Parte: Varykino

"Sempre acreditei que a concepção é uma coisa imaculada e que esse dogma não se refere apenas à Virgem, mas, pelo contrário, exprime uma concepção geral acerca da maternidade.
No parto, a mulher encontra-se entregue à solidão, ao abandono, à renúncia de todas as forças. E de tal modo, nesse instante crucial, o homem é incapaz de socorro, que chega a acreditar que não contribui em nada para o efeito e que a mulher foi visitada pelo céu.
A mulher põe neste mundo, sozinha, o seu filho, sozinha se entrincheira com ele num outro plano da existência, lá onde reina uma paz mais profunda e onde, sem receio, pode poisar o seu berço. Sozinha, com uma aprovação silenciosa, ela o alimenta e o cria.
Nas orações, pde-se à Virgem: «Roga a teu filho e a teu deus». Pomos-lhe nos lábios extractos do salmo: «E a minha alma exultou muito em Deus meu salvador. Porque ele lançou os olhos sobre a humildade da sua serva e por isso todas as gerações me proclamaram bem-aventurada.» Ela refere-se ao seu filho e ele glorifica-a. - «Porque o Senhor Todo-Poderoso me criou.» - Ele é a sua glória. E cada mulher pode dizer o mesmo. O seu Deus está no seu filho. Penso que esse sentimento deve ser familiar às mulheres dos grandes homens. Mas todas as mães sem nenhuma excepção deram à luz grandes homens e se a vida as acabou por enganar, não foi por culpa delas.»" [p. 303]
"Os progressos da arte cumprem-se de acordo com a lei da atracção: cada passo em frente implica a inicialimitação dos artistas anteriores, implica uma profunda reverência perante eles." [p. 307]
Décima Quarta Parte: De volta a Varykino
"«Minha deliciosa, minha inesquecível! Enquanto os meus braços vazios se lembrarem de ti, enquanto te sentir ainda apoiada no meu ombro e colada aos meus lábios, estou contigo. Condensarei todas as minhas lágrimas em qualquer coisa que seja digna de ti. As minhas saudades de ti ficarão inscritas em imagens cheias de ternura, e tão tristes que farão chorar. Não sairei daqui sem conseguir exprimir esses sentimentos. E depois partirei também. Eis a minha ideia: vou transfigurar-te traçando no papel a tua imagem à semelhança do que sucede quando, depois de uma terrível tempestade que abalasse o mar até às zonas mais profundas, aparecem inscritos sobre a areia os desenhos traçados pela vaga mais poderosa, a que foi mais além. O mar desenhou uma grinalda com pedra-pomes, uma rolha, algumas algas, tudo o que encontrou de mais leve, de imponderável. Marca a fronteira da ressaca mais alta, que se estende sem fim ao longo da costa. Assim te lançaram nos meus braços as tempestadesda vida, o meu orgulho. Assim te vou transfgurar.»" [p. 481]
"(...) a arte serve sempre a beleza e (...) a beleza reside na felicidade de possuir uma forma. Por sua vez a forma é o pressuposto orgânico da existência e todo o ser vivo deve possuir uma forma para existir, e do mesmo modo a arte, incluindo a arte trágica, é uma narração da felicidade de existir." [p. 483]
Décima Quinta Parte: O fim
"Pouco falta para concluir a história simples de Iuri Andreievitch, a sua vida nos últimos oito anos, durante os quais se foi deixando sempre decair: perdeu os conhecimentos e a prática da medicina, os hábitos de escritor; de vez em quando saía deste estado de acabrunhamento e de decadência, animava-se então, retomava uma certa actividade, mas depois de um lampejo fugaz recaía na indiferença para consigo mesmo e para com as coisas do mundo.(...)" [p. 497]
"- Actualmente são cada vez mais frequentes as hemorragias cardiacas sob uma forma microscópica. Nem sempre são mortais. Pode vencer-se a crise. É a doença típica do nosso tempo. Creio que as suas causas são essencialmente de ordem moral. A grande maioria dos homens é obrigada a uma duplicidade constante, uma duplicidade erigida em sistema. Não é fácil, sem se dar cabo da saúde, aparentarmos, dia após dia, o contrário daquilo que sentimos realmente, deixarmo-nos crucificar por aquilo que não amamos, regozijarmo-nos com aquilo que nos entristece. O nosso sistema nervoso não é uma expressão vã nem uma invenção. É um corpo físico composto de nervos. A nossa alma situa-se no espaço e implanta-se em nós como os dentes nos maxilares. Não podemos violentá-la impunemente." [p. 514]
"Posteriormente foram encontradas entre os seus papéis as notas seguintes: «Em 22, quando regressei a Moscovo, encontrei a cidade deserta e quase destruída. Tal como ficara depois das tragédias dos primeiros anos da revolução, assim se mantém hoje. A população é escassa. Não se constroem casas novas, nem se restauram as velhas.
Mesmo assim continua sendo uma grande cidade moderna e a única capaz de inspirar uma arte verdadeiramente renovada e actual.
A enumeração desordenada de objectos e de noções aparentemente incompatíveis e que parecem reunidos de modo arbitrário nos simbolistas como Blok, Verhaeren e Whitman não é, de modo nenhum, um capricho de estilo. É uma nova ordem de impressões que eles captaram da realidade viva e que reproduziram da própria natureza.
Da mesma maneira que fazem desfilar nos seus versos longas séries de imagens, assim também a rua aterfada de uma cidade do fim do século anterior corre e arrasta na sua frente multidões, carros, coches e depois, no século seguinte, os vagões dos comboios, dos carros eléctricos e dos «metropolitanos».
Aqui não há lugar para a velha simplicidade pastoril. Essa falsa ingenuidade é uma fraude literária, um maneirismo artificial, um fenómeno livresco que não tem a sua origem no ar livre, mas nas bibliotecas académicas. A linguagem viva que se formou ao contacto da realidade e que corresponde, naturalmente, ao espírito do nosso tempo, é a linguagem das cidades.
Vivo numa encruzilhada animadíssima. Estamos no Verão. O asfalto sobreaquecido das ruas, os reflexos do sol disseminados pelos vidros das janelas dos andares mais altos, a floração das nuvens e das avenidas, a cidade inteira, ofuscada pelo sol, redemoinha em torno de mim, põe-me a cabeça à roda aos outros. Para isso é que a cidade me educou e pôs a arte à minha disposição.
É tão íntimo o elo que existe entre a rua que dia e noite se agita e ruge para além das minhas paredes, e a alma moderna, como entre a primeira nota da abertura executada pela orquestra e o pano de boca, cheio de mistérios e de trevas, ainda descido, mas já iluminado pelas luzes da ribalta. A cidade que se agita e murmura sem descanso, do outro lado das portas e das janelas, é uma imensa introdução à vida de cada um de nós. E é precisamente sob esse ponto de vista que eu gostaria de descrever a cidade.»" [p. 520]
"Os soluços reprimidos sacudiam-na inteiramente. Enquanto pôde lutou, mas subitamente as suas forças quebraram-se. As lágrimas escaparam-se-lhe, inundaram-lhe o rosto, o vestido, as mãos e o caixão sobre o qual se apoiava.
Nada dizia, em nada pensava. Uma sucessão de imagens, de ideias, de evidências, voavam em liberdade, atravessaram-na como nuvens no céu, como outrora, nas suas conversações nocturnas. Era isso precisamente que dantes lhe comunicava felicidade e o sentimento de libertação. Um conhecimento ardente que não provinha da inteligência mas que tanto ele como ela apreendiam. Instintivo, directo.
Sentia-se também agora, penetrada desse conhecimento sombrio, indistinto, desse conhecimento da morte, dessa submissão em face dela, sem qualquer pavor. Como se tivesse vivido vinte vezes e se outras tantas tivesse perdido Jivago, e tivesse acumulado toda a experiência da dor ante a morte, de tal modo que tudo o que agora sentia, tudo o que fazia, era inoportuno.
Que amor excepcional tinham sentido, livre, raro, incomparável! Entendiam-se naturalmente como os outros cantam.
Amavam-se não porque não pudessem fazer outras coisas, não porque estivessem incendiados pela paixão, como tantas vezes se diz, dando assim uma falsa ideia do amor. Amavam-se porque tudo à sua volta os impelia a isso: a terra sob os seus pés, o céu sobre as suas cabeças, as nuvens, as árvores. O seu amor espalhava felicidade em torno mais ainda do que lha dava a eles: os desconhecidos das ruas, ao espaço que lhes abriam para que passassem, aos compartimentos que habitavam.
E isso era o essencial; isso os unia e os aproximava. Jamais, mesmo nos momentos de mais intensa e louca felicidade, se a viam esquecido do mais sublime e comovento dos seus sentimentos: o sentimento afortunado de que contribuiam para embelezar o mundo, que tinham uma relação profunda com o todo, com a beleza, com o universo inteiro.
Nessa harmonia estava para ambos a razão de viver. E assim a exaltação do homem acima do resto da natureza, as pretensões humanitárias tão em voga, a adoração e idolatria pelo homem, não os atraiam. Os princípios de um falso culto da sociabilidade, transformados em dogma político, pareciam-lhe medíocres e incompreensíveis subterfúgios.
Lara disse-lhe adeus nos termos simples e correntes de uma conversa animada e familiar, que rompia as fronteiras da realidade, sem mais significado do que os cantos e os monólogos das tragédias, os versos, a música e todos os outros convencionalismos que apenas se justificam porque há emoções sem convenções. A emotividade que subsistia numa conversa leve e improvisada provinha também de uma convenção: provinha destas lágrimas que banhavam, que alagavam as vulgares palavras de todos os dias.
Dir-se-ia que essas palavras, molhadas pelas lágrimas, formavam apenas um murmúrio terno e rápido, como o atrito do vento na folhagem sedosa, húmida, enredada por uma chuva morna." [pp. 531 - 532]
Décima Sétima Parte: Versos de Iuri Jivago
9. Embriaguês
"A hera enlaça-se ao salgueiro
Que nos protege do mau tempo.
Um manto envolve-nos os ombros
Quando te enlaço estreitamente.
Não. Embriaguês, e não a hera,
O que se solta do arvoredo.
E deste manto, já por terra,
Façamos antes um tapete." [p. 563]
16. Separação
"No limiar da casa o homem olha,
Com a vista perdida,
Toda a devastação deixada, em roda,
Pela sua partida.
Reinam ali o caos e a derrocada.
Mas a cabeça dói-lhe;
E, a chorar, nem avalia o estado
De quanto a vista colhe.
Há um rumor constante a persegui-lo.
Dir-se-ia que divaga...
Por que lhe vem ao espírito intranquilo
A imagem da vaga?
Pelos vidros cobertos de geada
Tudo é vago, nevoento...
E duplamente se assemelha às águas
O seu próprio tormento.
Pra ele as feições dela outrora foram
De fulgor semelhante
Ao traçado tão nítido que as ondas
Deixavam na vazante.
Mas hoje em sua alma aqueles traços
O olvido os invade,
Como os juncos que ficam afogados
Depois da tempestade.
Nos anos maus, hostis, em que era a vida
Uma funesta ronda,
Trouxera-lhe o destino, como vida
Na crista de uma onda.
Tudo arrostara a vaga, mas depois
De p'rigos e de escolhos
Tinha-a, por fim, incólume, deposto
Diante dos seus olhos.
Mas agora partiu, e obrigada
Foi decerto à partida.
A mágoa de ficarem separados
Vai roer-lhes a vida.
E o homem vê os múltiplos vestígios
Da participação,
No cofre, nas gavetas revolvidas,
Na roupa que há no chão.
Peças de vestuário, trapos velhos,
Um molde de costura,
Tudo vai arrumando, até que chega,
Por fim, a noite escura.
Mas os dedos picando numa agulha,
Que ficara esquecida,
Chora, de manso: ante os seus olhos surge
A imagem perdida." [pp. 572 - 573]

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